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Nossa Senhora das Janelas
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Nunca gostei do que vejo da minha janela, a vista das outras janelas, em todos os ângulos, neste cubo fechado que até delimita a vista para o céu. Mudei-me há dez anos e há dez anos que vejo outras janelas.
Antes vivia num prédio amarelo com uma janela grande horizontal e um parapeito, em que eu via o rio e a ponte e as árvores e os cães. Agora vivo num condomínio branco, e tenho uma janela vertical estreita que me condiciona o que posso ver, vejo janelas, janelas, janelas de todos os ângulos. Tiveram a amabilidade de construir um jardim, muito zen no centro do prédio, para servir de ambiente interno, construíram o ambiente em que as pessoas convivem. Tem bambos, muito zen, tem um espaço com agua e uma passagem do lado ao outro, e tem uns banquinhos de madeira, muito zen, e um parque de crianças no centro. Á volta, janelas.
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Costumava pensar na minha janela horizontal do prédio amarelo muitas vezes, e tentei uma vez construir um parapeito na que tenho agora, sem sucesso. Ao longo destes dez anos nunca me habituei nem me quis habituar a gostar das janelas que via, sentia que se gostasse estava a sucumbir ao arquiteto que desenhou o condomínio, a deixa-lo escolher o que eu via.
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Um dia dei por mim com um par de binóculos nos olhos a olhar para as janelas. Não só estava a olhar para elas, como a olha-las de perto. Percebi que podia retirar algo dali. As vidas dos outros que também escolheram aquela vista, que compraram a casa porque gostaram dela, e tentar perceber quem gostaria de ver aquilo quem sabe para sempre.
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Tenho agora vizinhos conhecidos, que não sabem que eu os conheço a eles, mas quem sabe eles também me conheçam a mim. O casal mais velho que discute sempre na cozinha. O senhor engravatado, que descobri que era piloto que costuma fumar na janela do escritório. Os três filhos do oitavo andar que trepam uns nos outros. Os colegas de quarto surfistas que ora dormem no apartamento ora na carrinha estacionada nas traseiras. E o que me faz mais companhia, o senhor sem cara que nunca dorme, que passa os dias à frente do computador a ver jogos de boxe, e que amavelmente me deixa ver também. Embora não saiba.
Nos últimos meses passei muito tempo a olhar para as janelas dos outros, e sinto que o arquiteto ganhou. Não sei se do confinamento forçado se agora aprecio mais as pessoas que as árvores, mas há sempre algo a acontecer naquelas janelas, o pouco que elas me deixam ver e o muito que eu imagino.
Forcei-me a trazer o amarelo do prédio antigo para o novo, mas ele sempre lá esteve, eu só não o via.
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Informação Tecnica
Realizado, Captado e Montado por Marta Laureano Com a Voz de João Santos, Margarida Santos, Paula Páscoa Musica de Igor Costa Texto Original "Diário da Peste" de Gonçalo M. Tavares publicado em Revista Expresso, abril 2020